segunda-feira, 15 de abril de 2013


A manhã, meus caros amigos… Novamente vos relato a minha história começando por esse momento seminal, que é a manhã. O dia a começar, os pássaros a cantar e todas essas maravilhas da Natureza que dão sentido à criação. Mas não era agora um quadro bucólico, como aquele que vos havia descrito, antes de ser arrancado à minha feliz existência tropical. Um gigantesco ronco de cidade a acordar substituía, tristemente, o amanhecer soalheiro que eu tanto amava!
No princípio, saído das entranhas do monstro voador que aqui me trouxera, dei por mim em deslumbre, com os olhos piscos, no meio de uma babel de muitos sons. Gemidos metálicos, buzinas estridentes, gritos de homens trabalhando, sem alegria ou prazer. Que mente tortuosa inventou semelhante inferno? Uma mente de metal e alavancas e escuridão e deserto, certamente!
Segui o meu percurso, descrente ainda e sempre do futuro…
E subitamente o Mar… Primeiro levemente, por entre os gritos das gaivotas, um ligeiro espumejar, que nos faz sentir a frescura de milhões de gotículas salgadas na alma e depois, forte e retumbante, o rugido de um gigante, enquanto se despenhava mais uma onda nas rochas, antigas como o mundo. E o aroma, pelos deuses… O perfume da felicidade é o que é. O odor de incontáveis peixes, algas, seixos e sal, muito sal… Já dele tinha ouvido falar e até já o tinha visto, lá em baixo, enquanto troava os ares no monstro voador, mas nunca o tinha ouvido, nem cheirado. O Mar infinito, universo mágico de cor azul esverdeado, mas em que cabe todo o arco-íris…. E subitamente também, a felicidade, essa frágil musa que eu julgava perdida para sempre, assomou à ombreira da minha vida.
Estava numa terra estranha, que sendo tão diferente, tinha uma vibração que, incompreensivelmente, se assemelhava à daquela onde eu nascera. Não sabia porquê, mas estava num sítio, que se parecia como a minha casa, mas sem o ser. Como dois actos da mesma peça, ou faces diferentes da mesma medalha…
Sentia-me assim em casa, “de volta pro meu aconchego”. Mas devia ser um sonho bom. Não podia ser verdade…
Vi então uma praia. Um extenso, branco e perfumado areal, com uma pequena capelinha entalada na rocha, de ar singelo, humilde, belo e incomensuravelmente forte. Parecia estar ali desde antes da areia, antes do tempo. Que bela visão, a do Mar…
Mas logo deixei de o ver. Atormentado, novamente agarrado, puxado  repuxado  transportado, e colocado em frias prateleiras de uma pequena mercearia. Lá me quedei, finalmente consciente do meu destino: seria consumido!
E não tardou a chegar o algoz. No caso a algoz, o que, bem vistas as coisas, tornou toda a experiência consideravelmente mais agradável.
Tudo se passou muito rápido. Um puxão daqui, uma sacudidela dali, atiram-me para o balcão de alumínio polido e, passados alguns segundos, lá vou a caminho, sem saber para onde, dançando ao ritmo do andar, daquela que é agora a minha Dona. E depois vi aqueles olhos… Escuros, castanhos, quase negros. Desenhados pela mão pressurosa de Afrodite, profundos, abismais, brilhantes. Olhavam para mim, estudavam a minha embalagem, mediam-me a consistência e a cor. Apaixonei-me imediatamente, quis perder-me neles, encontrar lá a minha morada e lá esperar pelo juízo final.
Não sei bem explicar o que me aconteceu depois. Sei que me vi dentro de uma pequena casa, quente e bem iluminada, colorida, repleta e cheirosa, com um enlevo feminino, como nunca eu vira. Vozes claras, risos alegres, e uma cozinha. Com o coração a rebentar de êxtase eu fui sendo moldado, cercado de açúcar, envolvido no chocolate. De gemas e natas fez a Dona a minha morada. Ao som do Tom e da Elis, as Aguas de Março batiam na janela e inundavam o ar à minha volta. E eu ouvia, como se olhasse para outra vida "…falta a raspa de laranja…", "não ponho licor que não vale a pena…", "...não, este não leva farinha…".
E lá continuei a passar por entre os dedos daquela que amava, entregue – e que bem entregue eu estava – aos seus cuidados ternos, já misturado, já confundido e ainda assim, mais perto da minha essência.
"Está pronto! Forno e depois frio, natas por cima e a caminho da barriguinha…"
O perfume doce do chocolate tudo envolve, tudo cura, tudo alegra. E assim cumpri minha função e senti-me feliz.
E amigos meus, cumpriu-se o meu destino! Dos confins da Bahia à terra que Mira o Mar. Sofri e redimi… Até te encontrar, minha Dona, meu amor, eu te me dedico, sempre teu

Cacau


"A breve vida de um fruto", Manuel Miraldo.


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